I
A campainha tocou. Ainda estranho o toque, a casa é nova. Pouco depois entrou o Luís. O Luís é um amigo de um amigo que há anos tenta sair comigo e que não me atrai de todo porque me parece pequeno, pequeno mesmo, de altura, e talvez também de espírito, mas isso ainda não sei, nem vou ficar a saber. O que sei é que para compensar a falta de estatura, ele fala, fala imenso, e eu ouço mal as minhas tentativas de resposta, sou sempre interrompida, e por isso ele acabou de entrar e eu já estou arrependida e predisposta a detestar a noite que consenti partilhar com ele. Passei a tarde a pendurar sanefas e no quarto a parede é de cimento, foi difícil. Ainda estava a explicar-lhe a razão do cansaço que sentia (e talvez fosse melhor regressar cedo a casa) e ele já subia ao escadote e pegava no black & decker e muito rapidamente instalava o suporte que faltava. Olhou para mim com um ar muito confiante e sugeriu que fosse ele a fazer o jantar. Não! Em dois minutos fico pronta e saímos.
Vai fazer dois anos que eu e o António nos separámos. O Luís sabe, todos sabem, não consigo esquecê-lo. Para contrariar o sentido da posse embarquei em noites audazes ou nem por isso, mas fracassei. Estranho o corpo dos novos amantes.
O carro é pequeno, como o Luís. E também está sujo. Ou é apenas um carro que serve muita gente. O carro transporta crianças, elas deixaram marcas. Penso na proposta dele de me preparar o jantar e convenço-me de que ele procura mulher para a vida. Tens filhos? Conheço-o há anos e não sabia que era pai. Ele tem filhos mas não fala deles, fala de tudo o resto. Conduz, discorrendo sobre o que vemos, vamos ver, sobre o restaurante e as vezes que já lá foi, os amigos, o nosso amigo comum e a mulher dele que é uma chata, primeira gaffe, ela é minha amiga, merda, não aguento este sujeito, vá lá, o restaurante é giro, servem-nos rapidamente, e agora? Agora, levas-me de volta a casa.
A primeira vez que dormi com alguém depois do António foi uma violência. Ele era amoroso, um brasileiro recém-chegado, carente, que depois de me beijar escreveu à mãe para a informar de que já tinha namorada. Com algum álcool a mais pareceu-me possível quebrar o feitiço do António. Mas a nudez corpo a corpo bastou para me despertar do torpor. E depois era tarde demais.
O Luís não concorda. Quer que eu conheça o bar que um amigo dele abriu há pouco tempo. São simpáticos, diz, o bar e o amigo. E eu, vá lá, vá lá, vou.
Ando preocupada comigo, com este desinteresse sensual. Rio-me sempre que penso nisso. Quando o António olhava para mim num lugar público, às vezes murmurava um és interessante, sabes? E eu sabia__ que devia despedir-me de todos. O desejo era urgente. Agora estou desinteressante, sabes?
O bar está vazio. Por trás do balcão estão dois homens que o Luís conhece, o tal amigo e um colega seu de trabalho. Põe-me a mão na cintura e faz as apresentações. Põe-me a mão na cintura e eu escapo.
Depois do brasileiro, seguiram-se outros. Aos poucos, ao ritmo de um passo em frente e dois atrás, aceitei que ninguém tivesse o corpo do único homem que eu desejava.
Aquele gesto do Luís irritou-me. A boneca não é dele! Deixo-o a falar com o dono do bar e sento-me num banco afastado. Arranco o chapéu da cabeça (uso sempre chapéu), e reparo que o outro sujeito, Zé qualquer coisa, me observa. E faço o mesmo.
Ainda devo ser bonita e não perdi o gosto pela sedução. Na verdade, sinto mais prazer no jogo que antecede o acto do que no acto em si. Mas já nem sei se ainda é assim. Nos últimos meses, a certeza do fim súbito do desejo, fez desaparecer o próprio desejo.
Ele preparou-me uma bebida. Explica-me que foi ele que desenhou o bar e que agora passa ali as noites, porque____ sim, e que me prefere sem o chapéu. Sorrimos.
No último dia do ano tomei uma decisão, óbvia, mas importante, apaixonar-me antes que a Primavera acabasse.
Decidimos fazer amor naquele dia, dali a pouco, muito pouco.
Lembrei-me de que tinha deixado de tomar a pílula.
Lamentei ter deixado o casaco no carro do Luís.
Ele ainda perguntou se eu queria ouvir alguma música em particular.
Mas depois, tornou-se claro que era completamente inútil resistir ou complicar. Pegámos na nossa tralha e saímos dali.
(continua)
Vai fazer dois anos que eu e o António nos separámos. O Luís sabe, todos sabem, não consigo esquecê-lo. Para contrariar o sentido da posse embarquei em noites audazes ou nem por isso, mas fracassei. Estranho o corpo dos novos amantes.
O carro é pequeno, como o Luís. E também está sujo. Ou é apenas um carro que serve muita gente. O carro transporta crianças, elas deixaram marcas. Penso na proposta dele de me preparar o jantar e convenço-me de que ele procura mulher para a vida. Tens filhos? Conheço-o há anos e não sabia que era pai. Ele tem filhos mas não fala deles, fala de tudo o resto. Conduz, discorrendo sobre o que vemos, vamos ver, sobre o restaurante e as vezes que já lá foi, os amigos, o nosso amigo comum e a mulher dele que é uma chata, primeira gaffe, ela é minha amiga, merda, não aguento este sujeito, vá lá, o restaurante é giro, servem-nos rapidamente, e agora? Agora, levas-me de volta a casa.
A primeira vez que dormi com alguém depois do António foi uma violência. Ele era amoroso, um brasileiro recém-chegado, carente, que depois de me beijar escreveu à mãe para a informar de que já tinha namorada. Com algum álcool a mais pareceu-me possível quebrar o feitiço do António. Mas a nudez corpo a corpo bastou para me despertar do torpor. E depois era tarde demais.
O Luís não concorda. Quer que eu conheça o bar que um amigo dele abriu há pouco tempo. São simpáticos, diz, o bar e o amigo. E eu, vá lá, vá lá, vou.
Ando preocupada comigo, com este desinteresse sensual. Rio-me sempre que penso nisso. Quando o António olhava para mim num lugar público, às vezes murmurava um és interessante, sabes? E eu sabia__ que devia despedir-me de todos. O desejo era urgente. Agora estou desinteressante, sabes?
O bar está vazio. Por trás do balcão estão dois homens que o Luís conhece, o tal amigo e um colega seu de trabalho. Põe-me a mão na cintura e faz as apresentações. Põe-me a mão na cintura e eu escapo.
Depois do brasileiro, seguiram-se outros. Aos poucos, ao ritmo de um passo em frente e dois atrás, aceitei que ninguém tivesse o corpo do único homem que eu desejava.
Aquele gesto do Luís irritou-me. A boneca não é dele! Deixo-o a falar com o dono do bar e sento-me num banco afastado. Arranco o chapéu da cabeça (uso sempre chapéu), e reparo que o outro sujeito, Zé qualquer coisa, me observa. E faço o mesmo.
Ainda devo ser bonita e não perdi o gosto pela sedução. Na verdade, sinto mais prazer no jogo que antecede o acto do que no acto em si. Mas já nem sei se ainda é assim. Nos últimos meses, a certeza do fim súbito do desejo, fez desaparecer o próprio desejo.
Ele preparou-me uma bebida. Explica-me que foi ele que desenhou o bar e que agora passa ali as noites, porque____ sim, e que me prefere sem o chapéu. Sorrimos.
No último dia do ano tomei uma decisão, óbvia, mas importante, apaixonar-me antes que a Primavera acabasse.
Decidimos fazer amor naquele dia, dali a pouco, muito pouco.
Lembrei-me de que tinha deixado de tomar a pílula.
Lamentei ter deixado o casaco no carro do Luís.
Ele ainda perguntou se eu queria ouvir alguma música em particular.
Mas depois, tornou-se claro que era completamente inútil resistir ou complicar. Pegámos na nossa tralha e saímos dali.
(continua)
- Emissão simultânea no Antes que me deite -
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